Passaram-se
dois anos desde a sua primeira morte.
Morte dolorosa, com requintes de crueldade. Tortura. Havia morrido
outras vezes, mas pequenas mortes. Mortes de mentirinha. Brincadeiras de
criança. O fato é que quando morreu de verdade foi enterrado vivo. Sem que
conseguisse se revirar no túmulo. Não fora assassinado. Nem tampouco suicídio.
Morrera de comum acordo. Hora após hora, ano após ano de paixão doentia e
contagiosa. Todo homem tem direito a um amor que o eleva e o destrói, disseram
a ele. Também disseram que tudo passaria, que era questão de tempo. Mas o óbito
já fora atestado. O relógio na foto estava parado. Nada do que fizessem,
milagres, ressurreições, o levaria de volta à sua vida anterior. Ele estava
mudado, mumificado, zumbi para sempre.
Esta era
sua sina. Sua maldição. Aos poucos foi se acostumando com a idéia de que jamais
viveria de novo. Jamais sentiria nas veias o sangue correndo como outrora. E
achou que carregaria este moto contínuo até o fim dos seus dias e a chegada da
outra morte, a definitiva. Um homem de 44 fazendo hora pra fechar a tampa.
Coisa por demais comum.
Às quatro
da manhã sentou em outro boteco pra mais um copo de cerveja. Companheiros de
trabalho, mortos como ele, mas sem reconhecer o próprio cadáver. A Lapa a noite
é cheia de figuras assim. Homens e mulheres, caçando olhares, mendigando
atenção, uma paquera bêbada, uma foda irrelevante pra ter segundos de carne na
cama. Com ele não era diferente. A noite servia pra isso. Uma trepada vez em
quando. Um orgasmo sem conseqüências que o deslocava deste mundo. Pensava que
isso era o que o salvava. Seu prêmio de consolação. Uma consignação dos deuses.
La petit mort. Passava
noites e noites assim. Buscando uma partner para mágica do gozo. Sem
envolvimento. Sexo só. Até que esporrasse. Pronto. Uma fuga. Um momento
fortuito da vida que ele não tinha mais.
A garota
sentou bêbada à sua frente. Me paga uma cerveja. Bebe aí, disse. Estendendo o
copo na sua direção. Os amigos sacanearam. Tiozinho. Ele levantou o dedo médio.
Vão pra puta que pariu. Bacacas, ela disse. Eles me amam, respondeu. Vão pra
casa levar esporro das esposas. Todas mal comidas, gordas e infelizes. Hahaha.
E você tiozinho? Vou te comer hoje. Vai ter que me convencer, disse. Isso é fácil, olha aqui. Colocou a mão da
menina sobre a calça. Não esmorecia tão facilmente, ainda mais de frente pra
uma ninfeta de 16, 17. Puta, que coisa tio, vai me rachar ao meio com isso. É
muito grande pra mim. Sou muito apertada ainda. Pediu outra cerveja. Saíram com
a garrafa em punho do boteco e começaram a caminhar pelas ruas tumultuadas. Um
misto de odores embriagava e entorpecia.
Maconha, suor, cerveja. Pessoas se esbarravam, se misturavam numa quase
orgia urbana, roçando seus corpos, tropeçando em vômitos, bêbados, loucos
felizes em seu carnaval fora de época.
Pararam na escadaria. Sentaram e ela apertou um baseado. Sabe que isso
aqui foi tudo feito por um artista estrangeiro? Acho que argentino, uruguaio,
sei lá. O cara pega azulejos e fica colando, criando esses mosaicos. Manero,
né? Puxou a fumaça. Não tinha vontade de falar. Quando se morre uma vez é
assim. Sabia o que queira e não estava pra bate papos sobre a arte não
reconhecida do Selarón, chileno bacana que loucamente embelezava a cidade com
sua obra sem ganhar nada com isso. Senta aqui menina. Pôs o pau pra fora e a
menina começou a masturbar. A escada estava escura. Os poucos casais ao lado não estavam nem aí
pro que acontecia ao seu redor. A menina cuspiu na mão e intensificou o
movimento. Levantou a saia e sentou lentamente sobre a pica. Era apertada
mesmo. Devagar tio, não quero que vejam. Sem muito movimento tá?
A garota
fedia. Sua buceta tinha um cheiro de amônia que o excitou mais. Não vai gozar
dentro viu? Rebolava enquanto dava mais um tapa na maconha e bebia a cerveja.
Sabe de uma coisa, tio? Eu gosto daqui. A noite sempre me traz uma surpresa.
Não tem medo de eu ter doença? Hahaha. Fica frio. Tô limpa. Fiz o teste esses dias. Trepei com
três num festa da facul. Tava doida e não liguei. Só caiu a ficha no dia
seguinte. Então fui no posto. Devagar. Você bem que podia armar uma com seus
amiguinhos hein? Me arruma uma maconha e cerveja que eu vou. Eu acho até que...
Levantou com o pau ainda duro. Mexeu um pouco até que esporrou nos azulejos.
Nossa, já? Vou nessa. Que foi cara? Amarelou? Cansei. Tenho que trabalhar
amanhã. Vai voltar pra esposa gorda? Não, ela morreu comigo faz uns anos. Ih,
foi mal. Paga outra cerveja? Deixou mais uns trocados e desceu as escadas de
Selarón. Cuidando para pisar em alguns azulejos e em outros não. Manias de
infância que ainda guardava. Com o pouco de vida que lhe fora cedido atravessou
ainda cambaleando a avenida de travecos, putas e viciados de todos os tipos.
Gente bem menos bizarra do que ele, pensava.
Chegou a sua quitinete fétida na Glória e ligou a TV num desses
programas evangélicos. Era umas das poucas coisas que o faziam rir. Amanhecia
no Rio. Sentou no computador e começou a escrever para ela. Deletou tudo quando
o sono chegou. Pensou ainda bêbado, em ligar e dizer que o assassinasse mais
uma vez. Uma só vez e esta seria a definitiva. Chegou a pegar no fone, mas o
sono veio antes da burrice. Melhor assim. Voltou ao seu estado de defunto
enquanto o sol despontava nos arcos da Lapa e o pastor da TV pedia perdão por todos
os pecados do mundo.
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